agosto 27, 2009

“Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...”

Há um poema que, desde meus tempos de colégio, sempre releio. Lembro da tarde em que certa amiga o apresentou para mim, na cozinha ensolarada onde, com os livros abertos sobre a mesa, fazíamos um trabalho de literatura. Quando comecei a ler os versos – ah!, ainda posso reviver a mesma sensação... –, foi como se o mundo à minha volta subitamente parasse e eu, adentrando um salão desconhecido, amplo e majestoso, permanecesse extático, incapaz de qualquer movimento, possuído pela poesia. Foi, aliás, quando conheci Fernando Pessoa. O poema, “Hora Absurda”.

Gostaria de poder partilhar com vocês minhas ideias sobre esse poema, mas estou sem tempo, infelizmente. Contudo, deixo aqui o link para a breve mas lúcida análise que Pasquale Cipro Neto faz, na Folha de S. Paulo de hoje, dos quatro primeiros versos:

O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas...
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...


E também reproduzo aqui duas das estrofes de que mais gosto:

Ah, como esta hora é velha!... E todas as naus partiram!
Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam
Do Longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram
Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...

O palácio está em ruínas... Dói ver no parque o abandono
Da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada
E sente saudades de si ante aquele lugar-outono...
Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada...

agosto 26, 2009

Enriquecer, mas sem perder o discurso jamais

Não está longe o ano de 1957, quando o montenegrino Milovan Djilas, férreo apoiador de Josip Broz Tito, lançou seu bombástico A Nova Classe – análise do sistema comunista, no qual denunciava o surgimento, no bloco dos países da Cortina de Ferro, de uma classe de privilegiados – os revolucionários que, ocupando altos cargos na burocracia, enriqueciam, corrompiam-se e se deleitavam nas benesses do Estado totalitário; sem, é claro, abdicar do discurso populista e demagógico, no qual os batidos chavões do igualitarismo seguiam intactos.

Djilas amargou processos, perda de cargos, expulsão do partido e prisões por conta da coragem, mas suas denúncias e análises, depois aprofundadas no livro Além da Nova Classe, de 1969, continuam atuais. Leiam, por exemplo, a reportagem da edição de hoje do El País: “La oligarquía orteguista”, que mostra como funcionários do governo da Nicarágua – no passado, guerrilheiros que fizeram parte da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) e lutaram contra a ditadura somozista; agora, burocratas do governo Daniel Ortega – enriquecem à sombra do Estado, sem abandonar, contudo, o discurso a favor dos pobres e as críticas à classe alta. Enquanto simulam virtude e defendem a luta de classes, cuidam com extremo carinho da própria conta bancária.

A imprensa brasileira deveria fazer reportagens semelhantes sobre os próceres do esquerdismo nacional. Há quase oito anos no poder, muitos certamente agora já podem viver de maneira nababesca – mas preservando os velhos discursos, pois uma boa pitada de contradição (que eles preferem chamar de dialética) é inerente aos catecismos leninistas.

agosto 23, 2009

O som aspirado do Aleph


Mais que transgressão sacrílega, o Golem – esse mito do judaísmo que se desenvolveu na Europa Oriental e Central – possui um forte apelo à resistência judaica diante de injustiças e preconceitos. A variante dessa lenda que mais aprecio é a do Maharal de Praga – que, à época dos pogroms, cria o Golem para defender os judeus das perseguições e acusações sem fundamento. A lenda foi recontada por Elie Wiesel – e há uma bela edição de 1986 pela Editora Imago, com ilustrações de Mark Podwal. A criatura, nessa história, não é somente um autômato, mas um ser de relativa complexidade, capaz de julgar e discernir, sempre a favor do bem. Está distante, dessa forma, de outra variante da lenda, que não me agrada: a do Golem como mero experimento de homens megalomaníacos, que pretendem ser Deus.

Mas esse mito se diversificou em dezenas de histórias. Os românticos alemães foram pródigos em criá-las, apresentando um Golem que, muitas vezes, não passa de certa versão piorada da espécie humana, licencioso, mesquinho. As variações, inclusive, chegaram aos modernos: em prosa ou poesia, Jorge Luis Borges e Isaac Bashevis Singer, por exemplo, revisitam o tema.

Em 2004, o Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Minas Gerais publicou uma coletânea de artigos: Os fazedores de golems, organizada por Luiz Nazario e Lyslei Nascimento. O livro é a melhor introdução ao tema em língua portuguesa, além de proporcionar um diálogo entre a tradição e as reescrituras modernas da lenda, não apenas em literatura, mas também no cinema, visitando inclusive várias das criaturas artificiais criadas pela imaginação. O ensaio de abertura do livro – “O Golem: do limo à letra”, de Lyslei Nascimento –, síntese histórica perfeita da representação do Golem na arte, está disponível na web, em pdf.

De minha parte, considero uma pena que as narrativas modernas tenham perdido os dois aspectos que mais me fascinam: o da criatura que faz justiça e o essencialmente cabalístico – ou seja, o da palavra, escrita ou falada, que insufla vida no barro inerte. Segundo o mito, o Golem é criado por meio da palavra ’emet (verdade). E como explica a professora Lyslei Nascimento, quando o rabino que o criou decide adormecê-lo,

apaga da palavra ’emet a letra Aleph, na transliteração, o sinal () que indica a aspiração da letra hebraica, representando o vento, o fôlego da vida. Ao se apagar a letra, o som aspirado do Aleph, desaparece o som vocálico do “e” – e a palavra ’emet – “verdade” – torna-se met, “morto”.

Trata-se de um mito, portanto, que homenageia a criação por meio da palavra, do verbo. Poucas lendas se aproximaram tanto da criação através da escrita – e da angústia que lhe é inerente. Nem sempre conseguimos dar vida aos nossos textos – na maioria das vezes, chegando ao final do trabalho, depois de horas ou dias de dedicação às palavras, temos sob o olhar uma peça defeituosa, um Golem claudicante, amorfo. Talvez lutar com as palavras nada mais seja do que essa tentativa desesperada e vã de recuperar, ao menos uma só vez, o sopro do Verbo divino, o som aspirado do Aleph. (O que, aliás, me recorda Hanna Arendt, para quem “nada do que vemos, ouvimos ou tocamos pode ser expresso em palavras que se equiparem ao que é dado aos sentidos”. Ou, dito de outra forma, tudo que expressamos por meio das palavras assume a condição de Golem – um ser imperfeito, capaz de cumprir determinadas missões, mas que jamais se igualará à realidade primeira, inaugural.)

agosto 20, 2009

Prazer e câncer do pensamento

Escrevi, para o último número do Rascunho, sobre Isaac Bashevis Singer e seu No tribunal de meu pai (Editora Cia. das Letras). A seguir, um trecho de minha crítica:

Na verdade, a formação de Isaac Bashevis Singer corrobora o que George Steiner diz, na longa entrevista concedida a Ramin Jahanbegloo (in George Steiner: à luz de si mesmo), sobre o vínculo entre erudição e judaísmo: “A religião judaica é a única para a qual o sábio é uma bênção”. Naquele paupérrimo apartamento do número 10 da rua Krochmalna, o pequeno Singer não se dedicava apenas ao estudo prazeroso das tradições hassídicas, mas, atormentado por inesgotáveis questionamentos, lia tudo que estivesse à mão, incluindo Crime e castigo, de Dostoiévski: “Parecia um livro de histórias, mas era outra coisa. Estranho e elevado, lembrava-me a Cabala. Quem escrevia livros assim? Quem era capaz de entendê-los? Aqui e ali, uma passagem se elucidava, eu entendia um episódio, e me entusiasmava com a beleza de uma nova compreensão”. Poucos anos depois, movido pela compulsão de saber, aprende hebraico, lê poesia iídiche e devora Strindberg, Turguêniev, Tolstói, Maupassant, Tchekhov. Apaixona-se por Sherlock Holmes, estuda Hillel Zeitlin e Spinoza - mas também se debruça sobre um compêndio de física. Tragado por um turbilhão de idéias, ele é a materialização do judeu descrito por Steiner:

[...] é aquele que lê um livro com um lápis na mão [...]. É também aquele que corrige os erros mesmo ao ler um jornal. [...] Eu não falo em termos de gênio, porém designo uma sede incessante de conhecimento, de transcendência e de pensamento puro. Creio que o judeu é aquele que, até na soleira de uma câmara de gás, ainda corrigia um texto. Os rabinos o fizeram. Corrigir um texto é interpelar Deus dizendo-Lhe que se é fiel a esse câncer do pensamento, a essa patologia do absoluto que Ele colocou em nós, sem que saibamos por que, é dizer-Lhe o que isso nos custou.

agosto 18, 2009

Rui Tavares e sua crítica ao “calvinismo literário”

Foi no simpático blog do Senhor Palomar que pude ler a crônica de Rui Tavares, “Bom! Bonito! Barato!”, agora disponível no blog do autor. Não deixem a leitura para depois. A seguir, um aperitivo desse texto suave, inteligente. Ele me me fez considerar uma pena que, em português, não tenhamos, no início das frases exclamativas, o sinal invertido dos espanhóis:

O texto escrito precisa de palavras curtas e palavras compridas, precisa de frases breves e de frases longas, precisa de linguagem concreta e de linguagem metafórica. O texto precisa de ritmo e esse ritmo só se consegue pela utilização de elementos diferenciados; mas o ritmo de um texto literário não é como um ritmo musical — ele não obedece sempre ao mesmo tempo, não cai em compassos, não é metronímico — e tem de ir sendo calibrado à mão em cada parágrafo, uns mais lentos, outros mais rápidos, outros que se desdobram em subordinadas. E também: frases sem verbos. O ritmo do texto não é tão regular nem sincopado como o da peça musical porque a sua busca é a da fluência. Fluência como a das melodias não musicais nas suas modulações sucessivas — como nos cursos de água, na brisa e no vento, nas chuvadas.

agosto 15, 2009

Péssimas escolhas

Nos últimos dias, por razão profissional, tenho sido obrigado a revisitar alguns livros que li há muitos anos – e aos quais não pretendia retornar. Refiro-me a certas obras presentes na lista da Fuvest para o Vestibular 2010.

Pois bem. Realmente desconheço o que norteia a escolha desses livros, mas certamente não são critérios estéticos. Escolher, do Romantismo brasileiro, José de Alencar, é uma afronta à sensibilidade dos jovens, é obrigá-los a perder tempo com um texto pomposo, artificial, de uma grandiloquência que chega a dar engulhos. Claro, podemos ver a escolha pelo lado bom: ao menos não obrigaram a juventude a ler O Guarani, mas, sim, Iracema, livrinho bem mais curto e relativamente menos medíocre. Mas, pergunto-me, por que escolher o que existe de pior no Romantismo brasileiro? Por que exigir que eles leiam o que há de mais embolorado em nossa literatura? Se os critérios forem aqueles que já cansamos de ouvir, de que as narrativas de Alencar serviram à criação de uma literatura efetivamente nacional, de que a prosa alencariana em Iracema é pura poesia, e blá, blá, blá..., sinceramente, precisamos, com urgência, dar um banho de água fria nos responsáveis pela escolha – e alguns talvez precisem de um bom clister ou de uma camisa-de-força.

Meu Jesus-cristinho! Minha Santa Terezinha de Lisieux! Por que não pedir que os jovens leiam o melhor?! Álvares de Azevedo e Castro Alves têm bons poemas – Azevedo, inclusive, escreveu alguns deliciosamente irônicos, em que ele ri do próprio Romantismo. E se é para ler Alencar, por favor, esqueçam essa bobagem de literatura indianista. (Isso talvez sirva aos estudiosos do folclore brasileiro, mas não à literatura.) Senhora é um romance razoável – e agredirá menos a inteligência da juventude.

Os problemas da lista, contudo, não param aí. Acho perfeito que os alunos tenham de ler Eça de Queirós. Mas não entendo porque três autores realistas (Eça, Machado e Aluísio Azevedo) – e entendo menos ainda porque, mais uma vez, não se escolhe o melhor. A cidade e as serras apresenta aquele Eça em que já se apagam as principais qualidades, como o sarcasmo e a crítica ferina à sociedade portuguesa. É um Eça que dá seus últimos suspiros. Por que não Os Maias? Por que tem muitas páginas? Ou por que a trama é complexa? Seja qual for o critério, mais uma vez despreza-se a inteligência dos jovens.

Também estranho a falta do Simbolismo. Portugal e Brasil têm ótimos poetas simbolistas. Claro que nenhum louco vai obrigar os jovens a ler um livro inteiro de Cruz e Souza, pois não há fígado que aguente. Mas, Jesus!, por que não uma boa antologia de poemas, reunindo os nomes mais importantes? Não seria melhor que os alunos pudessem ter uma visão ampla do movimento? Bastariam dez ou quinze poemas – e já teríamos uma ideia clara sobre a estética simbolista. E o mesmo poderia ser feito com os parnasianos.

Outra bobagem é Capitães da areia. Livrinho mal escrito, superficial, esquemático. Novamente escolhe-se o que um autor tem de pior. Jorge Amado já não é o que poderíamos chamar de clássico – e ainda obriga-se a juventude a ler o que ele tem de mais medíocre. Não entendo! Por que não pedir que os jovens leiam, por exemplo, A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água, obra divertidíssima – e uma das três ou quatro do Jorge que realmente merecem ser lembradas?

Na verdade, a lista da Fuvest é tristemente populista, pois comete o pior dos pecados: nivela por baixo a inteligência da juventude. Parte dos livros escolhidos passa a impressão de que os responsáveis se basearam naqueles estúpidos chavões: de que os jovens não leem, não gostam de ler, etc.

Ora, em minha opinião deveríamos fazer exatamente o contrário: deveríamos dar um voto de confiança aos jovens, oferecer-lhes o que a literatura de língua portuguesa tem de melhor, e entusiasmá-los à leitura de obras que realmente pudessem acrescentar algo à sua sensibilidade. Desacreditar da inteligência da juventude não é um bom recurso pedagógico. Talvez possa servir ao populismo rasteiro que grassa neste país, mas não é, decididamente, uma escolha sábia.