janeiro 23, 2015

Exercícios contra o despotismo da originalidade

Não procure ser original. Procure ser apenas você mesmo.
Hoje você terá um pouco de paciência comigo.

Quando comecei a escrever este texto, meu objetivo era falar sobre um tipo de exercício útil para novos escritores — e também para os velhos, desde que ainda não estejam enclausurados em seu próprio pedantismo.

Contudo, quando comecei a escrever, minha memória recuperou um pouco do meu tempo de faculdade, principalmente as aulas de Semiótica e algumas palestras que tive a oportunidade de assistir durante o curso de Letras — que, aliás, não terminei por absoluta falta de paciência.

Você verá, se tiver a paciência que não tive, como as lições da faculdade estão intimamente ligadas ao exercício de criatividade que vou propor.

Lembrar de minhas aulas — e do que a maior parte de meus professores falava sobre “ser original” — significa começar a entender a crise em que a chamada modernidade aprisionou as diferentes formas de arte.

E aprisionou por um motivo simples: por tratar a originalidade como um valor absoluto — um valor soberano, que não permite contestação ou contradição.

Hoje, o artista vive pisoteado pela angústia da originalidade. Ou, como dizia minha bisavó, ele está num mato sem cachorro.

A maioria dos escritores, por exemplo, acredita que, para se impor como artista, precisa agradar, não necessariamente nessa ordem, os membros de sua panelinha, a crítica acadêmica e a mídia. E ele não demorará a descobrir que o preço a ser pago para alcançar seu objetivo — sem tratar aqui de algumas questões perniciosas — tem apenas um nome: transformar a si mesmo num espetáculo.

Não basta escrever. É preciso escrever como os outros gostam. E não basta escrever como os outros gostam. É preciso pintar o cabelo de azul, usar um cavanhaque no estilo século 19, vestir roupas amassadas, transpirar certo descuido na forma de se comportar, como se o mundo fosse um pouco desprezível — sem jamais deixar de ser politicamente correto, claro — e afetar relativa pobreza (ainda que papai e mamãe sejam professores universitários ou fazendeiros).

A receita parece fácil. Mas não é.

Escrever como os outros gostam significa ser “dadá”, isto é, irracional e absolutamente espontâneo. Ou, como dizia Tristan Tzara, compreeender que “o pensamento se faz na boca”. (Sempre que lembro de meu professor repetindo isso com seriedade não consigo parar de rir.)

Ou seja, escrever como os outros gostam significa não ser escritor — mas, sim, um artista performático.

Essa angústia que obriga o artista a recriar um vanguardismo a cada dia contaminou toda a cultura. Leia o artigo do restaurateur Rogerio Fasano e você entenderá o que estou dizendo: hoje não basta cozinhar — é preciso ser uma espécie de abominável Dr. Phibes e recriar as dez pragas do Egito.

A angústia, o desespero da originalidade está na cama imunda da artista plástica Tracey Emin, no crucifixo imerso em urina de Andrés Serrano, na orelha implantada no braço de Stelios Arcadiou. Ou na irônica proposta de Bernardo Atxaga, de escrever um conto em 5 minutos.

Esse desespero pós-moderno pressupõe que arte é qualquer coisa colhida no ar e transportada a determinado suporte. E, não importando o resultado desse exercício, basta, ao final, seu marchand, seu editor, ou seu padrinho professor da USP anunciar: isto é arte.


Se você não acredita que, escolhendo a esmo duas palavras num dicionário e circundando-as com alguns verbos, substantivos e preposições, sejam eles quais forem, você tem um conto, então vale a pena continuar a ler este texto.

Minha proposta é que você não se preocupe em ser original — mas esteja disposto a exercitar sua criatividade.

Sempre digo que o escritor precisa escrever constantemente.

Claro, há períodos de necessária inatividade, principalmente depois de meses vivendo sob tensão diária para escrever um romance. Mas é preciso manter os motores aquecidos, ainda que em ponto morto.

Para aqueles que desejam adquirir habilidade ou se sentem vazios de idéias, costumo sugerir o exercício de dialogar com outras formas de arte.

Sem se preocupar em escrever obedecendo a determinado gênero literário, você pode produzir a partir da observação de uma pintura, de uma gravura, ou até mesmo de uma série de gravuras.

As 80 gravuras que compõem a série Los caprichos, de Francisco de Goya, oferecem múltiplas situações satíricas, a partir das quais você pode se propor a escrever, por exemplo, textos de 50 linhas.

Não se trata de descrever a gravura, mas, a partir da imagem e do que ela evoca, expressar suas próprias idéias — contrapondo-se ou não à mensagem do artista. É possível que a gravura seja o estopim para uma pequena história ou para fábulas em que você tentará construir cenas semelhantes.

O importante é não fazer crítica de arte — mas usar a gravura como um trampolim.

E criar as regras para o seu exercício: 1) escolher as gravuras; 2) estabelecer o tamanho do texto; 3) determinar em quanto tempo você alcançará o número de palavras; 4) começar; 5) cumprir as regras que você mesmo criou, de preferência sempre no mesmo horário.

Se os temas de Goya lhe parecem desprezíveis, recorra, por exemplo, às gravuras de Utagawa Hiroshige, um pintor japonês do século 19. Ele deixou uma série de 119 gravuras sobre paisagens e lugares emblemáticos da antiga Edo (hoje Tóquio).

Você pode transplantar as cenas que Hiroshige desenhou para o seu próprio cotidiano — ou tentar penetrar nas paisagens, como Akira Kurosawa fez, no filme Sonhos, com um dos quadros de Van Gogh.

Se trabalhar com imagens não lhe parece agradável, use textos.

Já que estamos falando do Japão, as narrativas de Yasunari Kawabata reunidas em Contos da palma da mão podem servir como estopim para novos textos, para novos contos. Com o agradável acréscimo de se referirem a outra cultura — e, portanto, a um imaginário em grande parte diferente do ocidental.

Você pode fazer o mesmo exercício com aforismos. Partir de uma sentença breve, de um pensamento conciso, e escrever uma pequena história.

Georg Christoph Lichtenberg é um aforista genial, pouco conhecido no Brasil, cujas frases às vezes estão muito próximas do nonsense. Uma de suas anotações diz assim: “Ele apreciava a pimenta e as linhas em zigue-zague”. Não temos aqui um personagem interessante?

Ou, se você preferir algo mais lógico, Lichtenberg também é perfeito: “Na verdade, há muitos homens que lêem apenas para não pensar”. As possibilidades de desdobrar esta afirmação num conto são infinitas.

O importante, em todos esses exercícios, é a disciplina. Você precisa estabelecer sua meta e cumpri-la. Com dedicação, com empenho, com vigor.

E não procure ser original. Procure apenas ser você mesmo.

Um comentário:

Henry Bugalho disse...

Excelente, Rodrigo.

O que muitos escritores acabam esquecendo é que poucos (pouquíssimos) leitores têm saco para experimentalismos, sejam formais ou linguísticos.
A maioria só quer uma trama interessante e um personagem cativante. Não sei se somente isto basta para a literatura, mas certamente basta para quase a totalidade do público leitor no planeta...

Abraços.